Hoje vou postar um conto de susto para trabalhar com a 4ª série, o conto se chama "Gaspar, eu caio", de Ricardo Azevedo. Deêm uma olhada:
"GASPAR, EU CAIO"
"Noite escura no mato. Estrada de terra sem vivalma. O vento gemendo pelos galhos e as nuvens passando nervosas, querendo chover. Um homem vem vindo lá longe. Devagarinho. Sem lua nem estrela para iluminar a viagem. Vem de sacola pendurada no ombro e, na mão, um pau de matar cobra. Trovoada. Os pingos da chuva principiam a cair. O viajante aperta o passo. Na curva, dá com uma casa abandonada. Cai um raio de despedaçar árvore. A chuva aperta. Na porta da tapera tem uma cruz desenhada. O homem não quer saber de nada. Mete o pé na porta e entra. Dentro, um pouco de tudo. Pedaços de mobília, tigelas, troços e trecos jogados no escuro. O viajante faz fogo. Agachado, tira um pedaço de carne da sacola e bota para assar. Está morto de fome. Deita no chão e solta o corpo, esperando a comida ficar pronta. A chuva vai minguando. 0 mato fica quieto. De repente, o telhado range. De lá de cima, um gemido rabisca o ar: - Gaspar! O homem estremece. Aperta os dentes. A luz do fogo é fraca. Não dá para ver nada. A voz chama e chama. - Gaspar! Já passa da meia-noite. Quem será? A voz insiste: - Gaspar! O viajante pensa em fugir. Mas, e a carne? E o frio? E a chuva ameaçando cair? Encolhido num canto, o homem arrisca: - Quem está aí? A voz, no telhado, continua grossa: - Gaspar! - Quem está aí? - Gaspar! - Quem está aí? - pergunta o homem. A voz então diz: - Gaspar ... Eu caio! - Pois caia! - responde o viajante. Estrondo. Espanto. Uma coisa despenca lá de cima - catapram - e cai no chão. Os olhos do homem crescem de pavor. É um pé. A ossada de um pé. E vem com os dedos mexendo! A voz bóia no ar: - Gaspar! O homem treme. - Eu caio! - Pois caia! - grita o homem de novo. Catapram. Vem outro pé. Cai e vai se arrastando para junto do primeiro. - Gaspar! O viajante respira curto. A cada resposta sua, desabam do forro pernas, coxas, tronco, braços e mãos de um esqueleto que vai se formando no chão. O esqueleto começa a dançar. A luz do fogo desenha sombras estranhas no casebre. - Gaspar! Gaspar! Gaspar! A voz grossa voa cada vez mais alto. - Eu caio! - Pois caia! - berra o viajante, sentindo sua hora chegar. E então - ploct - uma cabeça cai lá do alto. Meio de medo, meio de raiva, o homem chuta a caveira longe. 0 corpo descarnado fica zangado. Pára a dança, agacha e, cuidadoso, enfia o crânio no pescoço. Depois, lambuza a carne que assa no fogo com seu cuspe escuro. O sangue do viajante ferve. Estava morto de fome. A carne era tudo o que havia para comer. O homem cata o pau de matar cobra. - Pra mim chega! - De olhos fechados, mergulha sobre o esqueleto dando soco e pancada. 0 morto gargalha. Os dois rolam atracados pelo chão da tapera. A luta vara a noite. O homem bate, chora e sangra. O esqueleto range os dentes. Os dois quebram tudo, apagam o fogo com o corpo e vão parar do lado de fora, rugindo na lama. O tempo passa. Um golpe seco estala no mato. Silêncio. O morto suspira e cai. O viajante continua de pé, vitorioso. Passa o braço machucado sobre o rosto. Do chão, a caveira pede para o homem cavar um buraco no pé de uma árvore. O homem responde: - Nem nunca! Em seguida, vai até a árvore e trepa num galho bem alto. Abatido, o esqueleto pega e cavuca ele mesmo. Tira do buraco fundo um tacho cheio de ouro e prata. Depois, olhando para o homem pendurado na árvore, solta um gemido e some no vento. O viajante fica onde está. Manhã nascendo no mato. Seu peito mexe com força, indo e vindo. Olha as mãos sujas de sangue. Estrada de terra sem vivalma. A roupa rasgada. O suor. O sol avermelhado sopra uma brisa quente entre as folhagens. O homem sente o corpo doído e leve. Olha a tapera. Tem vontade de rir, cantar, conversar com alguém. Salta aliviado do galho, junta as coisas e vai embora.
Ricardo Azevedo. Meu livro de folclore. São Paulo: Ática, 1999, p. 33-38. (Conto da tradição popular)